O Deserto de ‘The Hills Have Eyes’ (1977)

★★★ — ‘A nice American Family. They didn’t want to kill. But they didn’t want to die’.

Em 1977, cinco anos após a estreia cinematográfica de Wes Craven com The Last House On The Left, The Hills Have Eyes surgiu praticamente por necessidade, e com o passar dos anos tornou-se um clássico de culto com um legado rico no género de terror, inspirando variados filmes e estabelecendo por si um popular franchise entre os fãs de terror mais dedicados.

No rescaldo da receção do seu filme-estreia, o desejo de continuar a realizar filmes cresceu em Craven, mas o mesmo queria desenvolver projetos fora do género de terror, o que se tornou uma tarefa bastante difícil, pois todos os produtores que encontrava apenas estavam interessados em trabalhar com ele em filmes violentos. Nisto, viu-se na necessidade de continuar a venturar-se pelo género, obtendo ajuda do seu amigo e produtor Peter Locke, que ajudou a financiar o projeto depois de expressar interesse em filmes de terror.

Para ganhar inspiração, Craven foi a uma biblioteca em New York, e procurou as histórias mais macabras possíveis, cruzando-se eventualmente com a lenda de Sawney Bean, o líder de um clã de canibais no século XVI que, alegadamente, assassinou mais de mil pessoas na Escócia. A lenda indica que após uma das vítimas escapar, o clã de cerca de 48 pessoas foi capturado pela comitiva do Rei, e os mesmo foram torturados até à morte, com uma brutalidade semelhante à sua.

Wes Craven ficou fascinado com a história e a bipolaridade da condição humana, em que pessoas civilizadas transformaram-se nas mais violentas. Esta é uma temática que já havia abordado em The Last House On The Left, onde explora a realidade da violência, o que as pessoas são capazes de fazer perante tamanha injustiça e perversidade, e o quanto animalescas e semelhantes se tornam quando existe uma sede de vingança ou desespero por sobrevivência. A jornada de Craven e Locke conduziu-os ao deserto do Mojave, onde tiraram inspiração para um filme em que uma família é atacada por um clã de canibais no deserto.

A família Carter está de férias e viaja para a Califórnia, atravessando o deserto do Nevada. Complexa e estereotipicamente americana, é liderada por Bob Carter (Russ Griever), a esposa Ethel (Virginia Vincent), os filhos Bobby (Robert Houston), Doug (Martin Speer), e Brenda (Susan Lanier), e ainda Lynne, a esposa de Doug interpretada por Dee Wallace, mais um bebé e duas cadelas. Que casting rico para uma chacina!

Ao pararem para abastecer combustível num estabelecimento muito suspeito, são alertados pelo proprietário idoso para não se aventurarem fora da estrada principal, pois o que encontrariam com certeza não os iria agradar. Como um bom grupo de presas num filme de terror, a família decidiu ignorar as instruções, seguindo exatamente por onde não deviam, apenas para se despistarem no meio do deserto, mesmo à frente de um conjunto de colinas habitadas por uma família de canibais perversos.

E essa é a simples e eficaz premissa deste clássico, que nos dias de hoje já se encontra desatualizada, com o cliché do velhote maluco da bomba de gasolina que avisa que algo mau vai acontecer ao grupo, e depois claro, acontece (!), mas em 1977 era ainda um conceito fresco!

The Hills Have Eyes cruza várias temáticas que nem sempre estão assertivamente implicadas na exposição, como o caso das duas famílias que, apesar de diferentes em todos os aspetos, de certa forma acabam por se tornarem um espelho de si próprias, explorando desse modo a dualidade da personalidade humana. No entanto, o paralelo entre este conto e a lenda de Sawney Bean diverge entre a temática da sobrevivência e a temática da vingança, em que aqui nos deparamos com a primeira — as motivações são completamente diferentes, pelo que na prática Craven pode-se ter desviado por lapso (ou não) na execução, em função da mensagem que procura passar.

Adicionalmente, o filme serve como um comentário social à cultura americana, em que os Carters representam a clássica e desejável família de classe média, e os canibais representam as minorias, pisadas e oprimidas pela sociedade, e esta longa acaba por servir como um embate entre culturas. No entanto, Craven evita apresentar uma posição política no tema, até porque está claramente estabelecido quem são os vilões e os heróis, acabando apenas por expor a ideia de que, para sobreviver, todos nós somos capazes de tudo. Ainda assim, a construção dada pelo argumento à família de canibais torna difícil de assumir isso, há pouca claridade na exposição dos temas abordados no filme.

Outro apontamento à narrativa passa também por alguma inconsistência no diálogo e no argumento, há ações de certas personagens que não fazem sentido e é como se servissem apenas para prolongar a história e deixar outros arcos desenvolverem-se, particularmente Bobby, em que o mesmo vê a sua cadela a ser estripada por estranhos e só o menciona à família quando convém ao argumento que o faça, e Fred (John Steadman), o dono do posto de combustível, que decide tentar enforcar-se depois de disparar sobre Bob quando este volta atrás para pedir ajuda, começando a chorar a seguir enquanto explica as origens da família canibal e a tragédia da sua vida a um estranho que conhecera horas antes.

Relativamente às mesmas, hoje em dia, mais devido ao remake de 2006, está estabelecido que os membros da família de canibais são pessoas quase ‘mutantes’ devido à radiação de testes nucleares do governo no deserto, mas aqui está mais implícito do que propriamente esclarecido, e a sua motivação não é devidamente explicada. Para todos os efeitos, daquilo que se pode observar, são um grupo doentio e impiedoso que ataca qualquer estranho que se atreva a atravessar o seu território.

Em comparação a The Last House On The Left, Wes Craven cria aqui um conjunto de personagens mais ricas e memoráveis, particularmente na família canibal, onde investe algum tempo de filme a desenvolvê-las. Vemos reuniões do grupo a discutirem o seu próximo passo, assim como o conflito interno que carregam, com Jupiter (James Witworth), o enorme e implacável líder do clã, Ruby (Janus Blythe), a figura mais ‘simpática’ do grupo, que procura escapar da rotina grotesca da família, e Pluto (Michael John Berryman), com o seu humor negro e doentio, e cujo aspeto diferenciador do ator o torna no perfeito ‘character actor’. A sua performance intensa e esforçada galardoou-o com uma nomeação para Melhor Ator nos Saturn Awards de 1978, na categoria de terror, assim como se tornou numa das figuras mais icónicas do terror, reconhecível mesmo para quem não assistiu a The Hills Have Eyes.

Criativamente, Wes Craven faz um bom uso do deserto gigante, poupando na arte e iluminação, e aproveitando a luz natural, o que dá ao filme um aspeto mais realista, que tem muitas vibes do Texas Chainsaw Massacre. Inclusive, Robert Burns, o diretor de arte, trouxe esqueletos e acessórios do filme de Tobe Hooper, onde desempenhou a mesma função.

Devido ao baixo orçamento e às oscilações da temperatura no deserto, as condições de filmagem não foram as melhores, exigindo um método de filmmaking mais guerrilha, especialmente nas cenas de matança na caravana, o que acabou por, na minha ótica, resultar melhor para o filme. Sendo de 1977 e low budget, é natural que a nível técnico a fotografia seja pouco atrativa para todos, especialmente nas cenas gravadas à noite, em que por vezes nem percebemos quais são as personagens que estão em cena até as mesmas se aproximarem da luz, mas, no entanto, essas imperfeições atribuem ao filme um aspeto natural noturno.

Em outros detalhes técnicos, a montagem, também pela mão de Wes Craven, o ambiente e arte são excelentes, começando pela câmara trémula nas cenas de matança, que resulta aqui muito bem, com Craven a inserir cenários luminosos dentro da caravana na noite profundamente escura do deserto, dando fotografia adequada para o detalhe na chacina e o caos claustrofóbico que cria uma dualidade entre a pequena caravana e o deserto sem fim.

The Hills Have Eyes é um filme que não é tão chocante como seu antecessor The Last House On The Left, em parte porque Wes Craven viu-se obrigado a cortar algumas cenas gráficas para fugir à rating X, mas que claramente demonstra a sua evolução como realizador, com um conceito e visão que inspiraram inúmeras obras de terror, e que, apesar das imperfeições, sucede bem na execução.

Segue o trailer de The Hills Have Eyes da Arrow Video, repleto de Spoilers!